sábado, 20 de junho de 2009

Ela

MINHA PREZADA AMIGA:

Escrevo-te neste radioso dia de um sol lavado, brilhante. Botafogo, aos domingos, é triste... como, de resto, são insípidos e tristes todos os domingos, em todas as partes do mundo. Ir hoje a um teatro, a um cinema?! Um passeio de automóvel? Não... Prefiro escrever-te, conversar contigo, e contar-te uma visita que tive ontem, a noite, no meu pequeno salão alaranjado e discreto, de que tantos gostas.

Lembra-te da nossa magnífica amiguinha Reinalda? Fomos todas colegas no Colégio Inglês, de Lisboa, - naquele onde, sem exceção de uma só, adquirimos o talhe de letra, comprido e fino, e estreito, e esguio, com que te escrevo. Pois a Reinalda, - de quem dizias outro dia nunca mais teres visto, - esteve aqui ontem. Está uma esplendida mulher! Alta, o corpo discretamente forte e cheio, morena, de uma pele morena, aveludada e macia, os olhos grandes e rasgados, e escuros, - toda ela, quando passa, pisando firme, tem uns gestos lentos de rainha verdadeiramente fidalga. Uma criatura que empolga e que de certo sugestiona aos homens inteligentes.

Reinalda trazia um vestido simples, leve, de listas largas, negras e brancas. Um chapéu preto, amplo. Iam-lhe bem. Se todas as mulheres, e os homens, soubessem como a simplicidade é sempre encantadora!...

Conversamos, recordamos. Esquecia-me dizer-te, minha boa amiga, que a nossa linda colega está viúva, há seis anos. Viúva!...

E com trinta anos, - ela, a sorrir, diz que tem vinte e sete, e com uma dúzia de adoradores!

Algumas desses, ou quase todos esses, homens de salão, mundanos, decididamente não querem casar, e apenas pretendem coisas deliciosas com o mínimo de responsabilidade. Mas, Reinalda, se por acaso consente o flerte simples, nada mais permite. É rigorosamente honesta.

E, detalhando, municiando, na intimidade da nossa antiga amizade, ela, entre a sua corte, destacou um, a que deu o nome de Arthur, como chamaria, é claro, Fernando ou Augusto. E confidenciou tudo, entre séria e risonha, - um enigma.

Viram-se há quatro anos, pela primeira vez, na Avenida. Cruzaram, - casualidade ou destino? – um longo olhar, desses olhares que não se esquecem nunca, e que, passados anos, ainda se recordam com saudade. Arthur, de certo, ficou perturbado, e, meio minuto depois, retornou a olhar, seguindo de longe o seu vulto de triunfadora. E, no mesmo momento – destino ou casualidade? – ela voltava-se também...

Na impertinência deliciosa de mulher, interroguei ainda a bela Reinalda:
- E, agora?!

- ...Nada.

Ora, minha boa Marcela, Reinalda saiu, deixou-me entre um abraço e um sorriso, satisfeita de si, orgulhosa talvez da sua pompa, e eu fiquei a cismar, a pensar... Depois, com intervalos, viam-se em teatros, cinemas, na Avenida, nas festas mundanas, nos chás de caridade. Olhavam-se, uma ou outra vez, um sorriso frisando os lábios. E nunca se chegaram a falar, porque nunca houvera ensejo de uma apresentação.

Reinalda fez uma pausa.

Perguntei-lhe:

- E depois?!

- Ele residia numa terra distante. Partiu... E, dois anos a fio, numa Constancia de admirar em homens, escrevia-me, em quase todos os vapores. Sempre um cartão postal de Arte. Uma palavra de saudade, de carinho, de afeto... sem data, sem assinatura, nada. Adivinhava, apenas, que era dele, porque não podia ser de outro.

- Respondias?

- Não. Voltou há um ano. Sei, - as mulheres inteligentes sabem sempre quando são queridas! – que o seu amor não mudou. Ao principio, procurava-me com o olhar, como outrora. Eu olhava-o, às vezes... e, às vezes, fazia que não o via. Nuances de flerte, coquetismo, que sei eu?! O certo é que, se quisesse, ele teria sido o meu marido. Mas, a algumas amigas, a pessoa íntimas, num dia de nervos, contei esse caso, que não era nada, mas que podia ter sido tudo. As amiguinhas, trêfegas e levianas, modernizadas, materializadas, riram... E o nosso segredo transpirou. Arthur soube, e melindrou-se, magoou-se... .

..Tu, que és tão boa e meiga, não achas que Reinalda é linda e má? Que foi, talvez inconscientemente, acredito, de uma crueldade dolorosa? Pois que?! Permitiu o flerte, animou-o, com o olhar e o sorriso, consentiu-o, e, depois, procurou ridicularizar o sentimento que despertara?! Contou as amigas, as conhecidas, aos parentes, com pretensões a ironia...

Ora, troçar de um amor que se inspira a um homem que é correto, é se apoucar a si mesma. Não é exato? Ela ficava com o direito de não corresponder, de cortar qualquer gesto afetivo, - mas não o de maltratar, de fazer um jornal falado de um sentimento todo íntimo, muito nobre, e que tinha as mais sérias intenções. Enfim, há criaturas que se distraem em fazer injustiças ou crueldades. E é pena que Reinalda, sendo tão bonita, e com aqueles lindos olhos, tenha sido tão má para quem tanto bem lhe queria!... Enfim, é a vida.

Com os beijos, minha boa Marcela, da tua REGINA.

Rio, nov. 918RAUL DE AZEVEDO, escritor amazonense, publicou Alma inquieta das Mulheres, Amigos e Amigas, 1919. Fez parte da Academia Amazonense de Letras.

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